19/09/2025 25 min de leitura

CONTORNOS DO BEM JURÍDICO-PENAL AMBIENTE

Nelson R. Bugalho
Advogado Ambiental
Mestre em Direito Penal Supraindiidual (UEM)
Promotor de Justiça do Meio Ambiente (1987-2023)
Vice-Presidente da CETESB (2011-2016)
Prefeito de Presidente Prudente (2017-2020)

SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais – 2. Conceito de ambiente das ciências biológicas – 3. Ambiente e Ecologia – 4. Delimitação do bem jurídico a proteger nos injustos penais ecológicos.

1. Considerações iniciais

Mesmo antes de o ambiente ganhar status constitucional, a Lei n. 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, já assinalava como seus objetivos a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida. Referido texto representou um grande avanço na defesa do patrimônio ambiental brasileiro, estabelecendo até mesmo o conceito de meio ambiente. Concebeu-o como sendo “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3º, inciso I). Como será demonstrado, este conceito, abrangendo apenas aspectos naturais do ambiente, está em conformidade com o artigo 225 da Constituição Federal, que o erigiu à condição de bem jurídico constitucional.

É de fundamental importância a exata compreensão do que deve ser entendido por ambiente, sobretudo suas principais especificidades, isso porque a Ecologia articula-se com o Direito Ambiental, com o Direito Penal Ambiental e também com outras ciências, numa integração indispensável para a pesquisa das normas componentes do ordenamento jurídico-ambiental, sobretudo dos injustos penais que tutelam o ambiente. Essa inevitável articulação decorre do fato de o Direito do Ambiente ser uma matéria pluridisciplinar, de tal forma que a pesquisa nessa área exige do operador do Direito que não feche janelas do conhecimento para outros ramos do saber. O jurista deve saber trabalhar em conjunto com os outros profissionais sociais.

2. Conceito de ambiente das ciências biológicas

O ambiente pode ser considerado sob as mais variadas perspectivas no âmbito do Direito, e isso decorre da existência de múltiplos ordenamentos jurídicos setoriais. O ordenamento jurídico-penal é um deles, e o conceito de ambiente que delimitará o bem jurídico a se proteger não pode ignorar a noção a esse respeito gravada na Constituição Federal, nem tampouco pode se afastar da realidade, objeto de sua regulação. 

Certamente haverá de existir uma estreita vinculação entre o mundo fático e a norma jurídica penal, decorrendo daí a importância do delineamento da noção extrajurídica de ambiente. No âmbito das ciências biológicas, leciona-se que ambiente é o “conjunto de condições que envolvem e sustentam os seres vivos na biosfera, como um todo ou em parte desta, abrangendo elementos do clima, do solo, da água e de organismos”. 

O ambiente deve ser considerado sempre a partir da perspectiva de um determinado organismo. Desde uma diminuta dimensão até numa dimensão de ordem planetária, os componentes bióticos estão intimamente conectados entre si e com os componentes abióticos, formando um todo indissociável. 

Os organismos e a somatória de todas as condições externas circundantes constituem o ambiente que, assim, seria integrado por todo o conjunto da flora e da fauna, e também pela água, ar atmosférico e solo. Todos esses componentes associados dão suporte à vida no planeta.  

3. Ambiente e ecologia

O conceito não-jurídico de ambiente encerra em si apenas elementos naturais. Retratando essa realidade, estabeleceu o artigo 3º, inciso III, da Lei n. 6.938/81 que meio ambiente é conjunto de condições, leis, influências e interações, de ordem física, química ou biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Esse complexo sistema, que propicia a existência da vida na Terra, constitui-se no objeto de uma ciência: a ecologia. 

Para os biólogos, a ecologia implica no estudo analítico das condições criadas pelo meio (tais como temperatura, umidade, teor de oxigênio, pressão, etc.), da ação deste sobre os seres que nele habitam, da maneira pela qual se adaptam para sobreviver e do modo como as atividades que desenvolvem modificam esse mesmo meio. Mas, apesar de a ecologia ser uma ciência biológica, é freqüentemente objeto de estudos em outras áreas, tais como na geografia e sociologia. 

É freqüente confundir o termo ambiente com ecologia, que compreende não só o estudo dos elementos constitutivos do ambiente, “mas mais do que isso, do relacionamento que existe entre eles. A ecologia é o estudo de como as partes vivas interagem com as partes não-vivas, e como os fatores, tais como o clima, influenciam todas as partes. Você pode imaginar que o meio ambiente é um agrupamento de dominós em torno de você, e a ecologia é o estudo do efeito dominó, ou o impacto de um dominó sobre os outros”.

A Ecologia é, assim, a “ciência das interações entre espécies vivas, ou entre cada espécie e o meio onde ela vive”. Essa ciência “estuda a complexa relação entre os organismos vivos e o ambiente físico em que eles vivem”. Está a ecologia relacionada não só com cada um dos elementos constitutivos do ambiente, mas igualmente com as ações recíprocas que são exercidas entre eles.   

A ecologia é, portanto, a ciência que tem como objeto de investigação a forma como se opera as relações entre os seres vivos e entre estes e o ambiente. A ecologia é uma ciência, e o ambiente é seu objeto. 

4. Delimitação do bem jurídico a proteger nos injustos penais ecológicos

Ainda que se trate de interesses sociais mais relevantes, deve o Estado adotar primeiramente meios menos lesivos antes de empregar o Direito Penal, porque este é um instrumento subsidiário, a ultima ratio. Importante enfatizar que deverá preferir-se antes a utilização de meios desprovidos de caráter de sanção, como uma adequada política social. De qualquer forma, o Direito Penal de um Estado democrático e social somente se justifica como um sistema de proteção da sociedade e de seus valores mais transcendentes, sendo que os interesses sociais que por sua importância podem merecer a proteção do Direito se denominam bens jurídicos

Os bens jurídicos são descritos como “valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”. Aníbal Bruno arremata que bens jurídicos “são interesses fundamentais do indivíduo ou da sociedade, que, pelo seu valor social, a consciência comum do grupo ou das camadas sociais nele dominantes elevam à categoria de bens jurídicos, julgando-os merecedores da tutela do Direito, ou, em particular, da tutela mais severa do Direito Penal”. 

O bem jurídico-penal está relacionado com uma escolha, e esta deve refletir, na exata medida, a relevância do objeto. A escolha do bem jurídico é de fundamental importância, especialmente para um Direito Penal de feição liberal e cientificamente moderno, instrumento próprio de um Estado de Direito democrático e social. Em outras palavras, o Direito Penal deve ocupar-se de garantir a proteção dos valores mais transcendentes para a coexistência do homem em sociedade, destacando-se nesse contexto o ambiente.

Embora o ambiente se destaque como um importante bem jurídico merecedor de proteção penal, há necessidade de um perfeito delineamento conceitual do objeto de proteção do Direito Penal Ecológico, uma vez que múltiplas concepções do ambiente poderão ter relevância jurídica.

O estabelecimento de um conceito preciso de ambiente é questão bastante tormentosa, sobretudo porque invariavelmente se pretende empregar um mesmo conceito para os mais variados setores do ordenamento jurídico. Parte da doutrina, quando aborda a noção jurídica de ambiente, afirma não dever ela ficar limitada aos seus aspectos biológicos, mas sim compreender também uma abordagem jurídica totalizadora, porque assim se ampliará a tutela jurisdicional ambiental, imprescindível para resguardar o direito fundamental gravado no caput do artigo 225 da Carta Constitucional: meio ambiente ecologicamente equilibrado

A esse respeito, pondera-se que o conceito de ambiente deve ser globalizante ou totalizador, e nesse sentido, não pode ser compreendido como sendo constituído apenas pela água, solo, ar, flora e fauna (meio ambiente natural), mas também pelos espaços urbanos fechados (conjunto de edificações) e espaços urbanos abertos (equipamentos públicos, tais como ruas, praças, parques etc.), que integram o denominado meio ambiente artificial, e ainda aquele ambiente constituído pelo patrimônio histórico, arquitetônico, artístico, turístico, arqueológico, paisagístico, científico e paleontológico, havido como meio ambiente cultural. Trata-se evidentemente de um conceito amplíssimo, totalizante, compreendendo não só os componentes ambientais naturais, mas também componentes humanos artificiais e culturais. Nesta mesma linha de raciocínio, justifica Fernando Fuentes Bodelón que “todos os fatores que integram o mundo natural estão relacionados em interação contínua e profunda […], dando-se esta relação também com o mundo artificial ou humano”. 

Édis Milaré, adepto dessa concepção totalizante, sustenta que “o meio ambiente abrange toda a natureza original (natural) e artificial, assim como os bens culturais correlatos”, afirmando a existência de ecossistemas naturais e ecossistemas sociais. Sob o prisma da sociologia não se pode negar a amplitude do termo ecossistema, mas há que se ter em conta que o mesmo foi  emprestado das ciências biológicas. E os ecossistemas são sempre naturais, não podendo ser classificado como tal o “ambiente” criado pelo homem.  

Ainda dentro dessa perspectiva globalizante, e sob o fundamento de que o termo meio ambiente é um conceito jurídico indeterminado e que deve ter seu conteúdo preenchido pelo intérprete, por vezes acrescenta-se mais um aspecto àquela classificação tripartida: o meio ambiente do trabalho. Este se constitui no local onde “as pessoas desempenham suas atividades laborais, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independentemente da condição que ostentam (homens ou mulheres, maiores ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos etc.)”. Afirma-se assim que o artigo 225 da Constituição Federal diz respeito a todos os aspectos do ambiente, aí se incluindo o ambiente do trabalho porque é nesse ambiente que o homem passa a maior parte de sua vida produtiva. 

Outra vertente doutrinária propõe um conceito reducionista de ambiente, concebendo-o como o conjunto de “elementos naturais de titularidade comum e de características dinâmicas: em definitivo, a água e o ar, veículos básicos de transmissão, suporte e fatores essenciais para a existência do homem sobre a Terra”. O ambiente é considerado enquanto entorno natural, constituindo-se em bens tutelados apenas os recursos naturais comuns – a água e o ar -, posto que, uma vez inadequadamente manejados, veiculam toda uma série de transtornos dos sistemas naturais. Portanto, desta concepção natural, contudo reducionista de ambiente, são excluídos os outros componentes naturais: flora, fauna e solo. 

As duas concepções de ambiente aludidas não estão em conformidade com o texto constitucional brasileiro, nem tampouco demarcam o objeto de proteção do Direito Penal Ecológico. Não é necessária qualquer maximização do que se deve compreender por ambiente, isso porque a agregação de outros componentes – humanos – ao conceito não implicará na ampliação da sua tutela jurisdicional, como equivocadamente se tem afirmado. Nem tampouco um conceito reducionista é apto a revelar a exata dimensão do bem jurídico ambiente, tal qual consagrado na Constituição e na legislação ordinária, em especial na Lei n. 6.938/81. 

Constitui um equívoco a justificativa apontada para a adoção da concepção globalizante de ambiente porque a tutela dos componentes “ambientais” humanos prescinde do artigo 225 da Constituição Federal. Nada justifica optar-se por um conceito amplíssimo de ambiente, que inclua não só os componentes ambientais naturais, mas também os componentes ambientais humanos (artificiais e culturais), isso porque o texto constitucional dedicou uma seção própria dentro do Capítulo III para o que se convencionou denominar meio ambiental cultural, e que constitui-se simplesmente em patrimônio cultural. Da mesma forma o capítulo que trata da política urbana engloba os componentes “ambientais” humanos desprovidos de especiais valores, denominado meio ambiente artificial, e que, na verdade, é objeto do Direito Urbanístico, porque relativo à ordenação do território.

Tampouco é possível aceitar que “a tutela mediata do meio ambiente do trabalho concentra-se no caput do artigo 225 da Constituição Federal”. Não é porque o artigo 200, inciso VIII, assinala que ao Sistema Único de Saúde compete, além de outras atribuições, “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”, que tal ambiente está conectado com o artigo 225. 

A interpretação da Constituição pressupõe uma visão de conjunto, isto é, parte da “premissa fundamental de que a Constituição há de ser interpretada sempre como um todo, com percepção global ou captação de sentido”. Através desse método integrativo ou científico-espiritual de interpretação da Constituição, “nenhuma forma ou instituto de Direito Constitucional poderá ser compreendido em si, fora da conexidade que guarda com o sentido de conjunto e universalidade expresso na Constituição. De modo que cada norma constitucional, ao aplicar-se, significa um momento no processo de totalidade funcional, característico da integração peculiar a todo ordenamento constitucional”.

O princípio da unidade da Constituição, catalogado por Canotilho como um dos princípios da interpretação constitucional, significa que a Carta Constitucional “deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas”, obrigando o intérprete a ter em conta a Constituição na sua globalidade e harmonizar os espaços de tensão existentes entre suas normas a concretizar, de forma que se “deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios”. 

Dessa forma, não é porque a Constituição reconheceu a existência de um meio ambiente do trabalho que, pelo simples fato de a palavra trabalho ter sido precedida pela expressão meio ambiente, estará aquele ambiente conectado com o artigo 225 da Carta da República. São institutos totalmente distintos. O artigo 200, inciso VIII, diz respeito sim ao ambiente em que são desenvolvidas atividades laborais, mas isto não guarda nenhuma conexão com meio ambiente ecologicamente equilibrado. Entender dessa forma é ignorar a realidade e o conteúdo da norma constitucional expressa no artigo 225, que não dá margem para a formulação de um conceito globalizante de ambiente, nele inserindo elementos que não sejam naturais.

Porque assim pode ser convencionado, é perfeitamente aceitável referir-se a meio ambiente do trabalho como o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, cujo equilíbrio está na dependência da salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, mas tais condições não podem ser associadas ao ambiente natural. O mesmo raciocínio vale para o que se convencionou chamar de meio ambiente artificial e meio ambiente cultural. 

Essas concepções apenas depreciam o valor constitucional gravado no artigo 225 da Carta Constitucional, que se referiu apenas ao ambiente natural, sendo que a inserção de qualquer outro elemento que não seja dessa natureza ao conceito de ambiente não poderá ser havida como uma interpretação conforme a Constituição.

A interpretação normativa, assim como sua construção, deve estar obrigatoriamente vinculada aos critérios e valores estabelecidos na lei maior. Assim, como nenhuma norma infraconstitucional pode ignorar o quadro axiológico previamente estabelecido na Carta Constitucional, igualmente a “interpretação conforme a Constituição implica uma correlação lógica de proibição de qualquer construção interpretativa ou doutrinária que seja direta ou indiretamente contrária aos valores constitucionais”.

Por fim, a segunda concepção, centrada apenas em dois componentes ambientais naturais – água e ar – e, portanto, contemplando um conceito demasiadamente restrito de ambiente, situa-se numa posição muito aquém do que efetivamente prognosticou o artigo 225 da Constituição.

Nessa linha de raciocínio, o conceito mais apropriado de ambiente é aquele que contempla apenas elementos naturais – ar, água, solo, fauna e flora -, isso porque a elaboração de um conceito jurídico de ambiente jamais deve apartar-se de uma investigação científica, com especial destaque para uma correta interpretação da Constituição Federal, que não acolheu a noção amplíssima (globalizante) nem tampouco a reducionista (restrita) de ambiente. Qualquer tentativa de maximização ou redução do que se deve compreender por ambiente, nele agregando componentes humanos ou excluindo componentes naturais, não estará em conformidade com o texto constitucional.

O Capítulo VI da Constituição Federal, em sua integralidade, está centrado em componentes ambientais naturais, nada autorizando o intérprete pretender agregar outros elementos que não sejam desta natureza, a exemplo dos chamados componentes ambientais humanos, cuja inserção ao conceito de ambiente decorre do fato de estarem estes também associados à noção de qualidade de vida.

É irrefutável que a qualidade de vida esteja conectada com a qualidade do ambiente, seja qual for este, mas a Carta Constitucional delimitou o âmbito do que se deve compreender por meio ambiente no artigo 225, e este dispositivo está todo estruturado em componentes ambientais naturais. Se assim não se entender, tudo o que estiver relacionado com qualidade de vida poderá ser havido como um componente ambiental, especialmente porque a “noção de qualidade de vida sugere uma complexização do processo de produção e de satisfação de necessidades, que tende a superar a divisão simplista entre necessidades objetivas e necessidades de caráter subjetivo, ou inclusive a dicotomia entre fatores biológicos e psicológicos, incorporando a determinação cultural das necessidades. Em sua análise imbricam-se as noções de bem-estar, nível de renda, condições de existência e estilos de vida (…).

A Constituição Federal claramente aponta para uma concepção de ambiente circunscrita a componentes naturais, embora se reconheça que componentes humanos possam integrar um ambiente, mas não o ambiente elevado à categoria de bem jurídico constitucional previsto no artigo 225. Dessa forma, a concepção totalizadora de ambiente deve ser especialmente repudiada sob pena de se converter num conceito juridicamente imprestável e banalizado, porque flagrantemente destoante do texto e do contexto constitucional, que, ao assegurar o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, definitivamente concebeu um direito ecológico. 

O reconhecimento de que a noção de ambiente deve ficar circunscrita a aspectos naturais não a torna ideologicamente neutra, alheia a interesses econômicos, sociais e culturais, mas de qualquer forma, a ordem constitucional não autoriza a construção de um conceito que contemple aspectos generalizados das relações sociedade-natureza, especialmente quando fruto de uma abordagem jurídica. 

Não é só o texto constitucional que justifica centrar a noção de ambiente em seus componentes naturais, isso porque o próprio conceito de ambiente estabelecido na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente – LPNMA (Lei n. 6.938/81) também orienta essa interpretação. O artigo 3º, inciso I, da Lei n. 6.938/81 estruturou-se sobre bases naturais, e ainda partiu de uma perspectiva biocêntrica ao estabelecer que meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Somente aspectos naturais foram contemplados no conceito legal. O dispositivo em análise foi integralmente organizado com base num ambiente natural, de forma que a LPNMA seja fundamentalmente voltada para a preservação, melhoria e recuperação dos recursos naturais (artigo 2º, caput). 

Considerando que o conceito biológico e legal de ambiente agrega a interação como seu elemento, sequer haveria razão para consagrar a expressão meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF, artigo 225, caput) como direito fundamental. Contudo, considerando que a ecologia está firmemente radicada na biologia, embora venha cada vez mais se revelando como uma disciplina integradora, que une os processos físicos e biológicos, servindo de conexão entre as ciências naturais e as ciências sociais, deu a Carta Constitucional mais um indicador de que o bem jurídico ambiente deve ficar circunscrito a seus componentes naturais quando empregou a palavra ecologicamente para referir-se ao ambiente. 

Mas não é só a Constituição Federal e a LPNMA que revelam o acerto dessa concepção intermediária (ampla) e essencialmente natural de ambiente. O repúdio às outras concepções – globalizante e reducionista – decorre igualmente da articulação do Direito com outras ciências, em razão das variadas interfaces do objeto ora tratado. Uma das formas possíveis de viabilizar essa articulação é por meio da “importação de conceitos de outras ciências para serem trabalhados e transformados pelas necessidades internas do desenvolvimento do conhecimento da ciência importadora”.

Enfim, o núcleo central da noção jurídica de ambiente deve ficar circunscrito aos seus elementos naturais (ar, água, solo, flora e fauna), não podendo ser admitida a ampliação do conceito para englobar componentes ambientais humanos, nem tampouco sua redução, com a exclusão de alguns componentes (solo, flora e fauna). Essa linha de pensamento evita desvios à lógica unitária do sistema jurídico, posto que a delimitação dos contornos do conceito está em conformidade com a Constituição Federal e a LPNMA, além de resultar da articulação do Direito com outras ciências.

Importa anotar ainda que a concepção de ambiente que melhor atende à função primordial do Direito Penal é a intermediária, sobretudo “diante da extrema indeterminação das concepções totalizadoras ou amplíssimas e do reduzido âmbito das teses restritas. A primeira dificulta sobremaneira a individualização da matéria proibida ou ordenada (e permitida), e a segunda impede uma tutela efetiva em consonância com o conteúdo e a relevância do bem jurídico e o mandato constitucional”. 

É preciso atentar que é inevitável o recurso a fontes extrajurídicas para precisar os contornos do injusto penal ecológico, e mais individualizada será a matéria proibida ou ordenada, com reflexos na efetividade da tutela do bem jurídico, se a concepção de ambiente estiver circunscrita a elementos naturais. 

O ambiente, especialmente para o Direito Penal, deve ser um conceito fundamentalmente biofísico, compreendendo todos os elementos do mundo natural (bióticos e abióticos), deixando de lado outras concepções que relacionam esse conceito com o mundo artificial construído pelo homem, ainda que este tenha agregado valores culturais, porque absolutamente não diz respeito à manutenção do equilíbrio ecológico. O mundo natural e o mundo artificial são realidades diferentes, e, por isso mesmo, merecem tratamentos substancialmente diferentes. 

  1. Cf. FRANCO, Antonio Souza. Ambiente e Desenvolvimento. Textos. Ambiente. Centro de Estudos Judiciários, 1994, p. 268-269, apud ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O princípio do poluidor pagador pedra angular da política comunitária do ambiente. Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 13.
  2. ART, Henry W. et alli. Dicionário de ecologia e cincias ambientais. 2. ed. So Paulo: UNESP/Companhia Melhoramentos, 2001, p. 22-23.
  3. Embora seja a ecologia uma ciência essencialmente biológica, sobretudo porque tem como objeto de investigação o ambiente natural, tem ela inegáveis dimensões sociais, econômicas e culturais.
  4. DASHEFSKY, H. Steven. Dicionário de ciência ambiental guia de A a Z. So Paulo: Gaia, 1997, p. 184
  5. FRIEDEL, Henri, op. cit., p. 105.
  6. SALGADO-LABOURIAU, Maria La. História ecológica da Terra. So Paulo: Edgard Blcher, 2001, p. 1.
  7. Cf. MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal : parte general. 7. ed. Buenos Aires: Julio Csar Faira Editor, 2004, p. 127.
  8. Cf. MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal : parte general, p. 128.
  9. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios bsicos de direito penal. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 1991, p. 16.
  10. BRUNO, Anbal. Direito Penal Parte geral, t. I, Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 29-30.
  11. Assinala Francisco Muoz Conde que o conceito de bem jurídico utilizado pelo Direito Penal como critério de classificação, aglutinando os diversos tipos delitivos em funo do bem jurídico neles protegido (delitos contra a vida, contra a honra, contra o patrimônio etc.). Segundo este critério de classificação, distinguem-se entre bens jurídicos individuais (vida, liberdade, honra) e comunitários (sade pública, segurança do Estado, ordem pública) (MUOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Trad. e notas Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1988, p. 51).
  12. Cf. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituio. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 23.
  13. Cf. SILVA, Jos Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. rev. e atual. So Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 20-21; MILAR, Edis. Direito do ambiente : doutrina, jurisprudência, glossário. 4. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 99-100; MUKAI, Toshio. Direito ambiental : sistematizado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 3; FREITAS, Gilberto Passos de. Ilcito penal ambiental e reparao do dano. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 24-27; FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 18; SIRVINSKAS, Lus Paulo. Tutela penal do meio ambiente : breves considerações atinentes Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1988. 2. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Saraiva, 2002; MIGLIARI JNIOR, Arthur. Crimes ambientais : lei 9.605/98 : novas disposições gerais penais : concurso de pessoas : responsabilidade penal da pessoa jurídica : desconsiderao da personalidade jurídica. Campinas: Interlex Informaes Jurdicas, 2001, p. 26; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Tutela penal dos interesses difusos, p. 44-46.
  14. A concepo totalizadora ou globalizante amplssima, e no ampla, como afirmado por Arthur Migliari Jnior que, a respeito, diz o seguinte: O conceito de meio ambiente no deve se restringir ao ambiente natural, alis, o prprio legislador nacional adotou tambm conceito amplo, na definição legal do meio ambiente (MIGLIARI JNIOR, Arthur, op. cit., p. 26). Ora, o conceito amplo apenas contempla elementos naturais e repudiado pelo referido autor que, na verdade, acolhe o conceito amplíssimo de ambiente.
  15. FUENTES BODELN, Fernando. Planteamientos previos a toda formulación de um derecho ambiental. DocAdm, n. 190 (Abril-junho, 1981), Madrid, p. 113 e seguintes.
  16. Direito do ambiente, p. 53.
  17. Cf. CRETELLA JNIOR, Jos. Comentários Constituio Brasileira de 1988. v. VIII. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 4522.
  18. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2000, p. 21.
  19. MARTN MATEO, Ramn. Tratado de derecho ambiental, v. I. Madrid: Editorial Trivium, 1991, p. 86.
  20. Idem, p. 86-89.
  21. Tambm no sentido de que o conceito de ambiente deve ficar circunscrito ao entorno natural: URRAZA-ABAD. Jess. Delitos contra los recursos naturales y el mdio ambiente. Madri: La Ley, 2001, p. 61-73.
  22. Afinal, se o conceito deve ser globalizante para a se compreender tudo aquilo que est de alguma forma relacionado com uma sadia qualidade de vida, outros aspectos devero tambm ser acrescentados s classificaes propostas, e ento, a compreensão de ambiente passar a ter uma dimenso cada vez mais ampla.
  23. Constituio Federal, artigo 216.
  24. Constituio Federal, artigo 182.
  25. Ao colocar-se de lado a problemtica urbanstica e do patrimônio cultural e artstico, evita-se a criação de um macroconceito, de modo a fixar, em termos jurídicos, um conceito estritamente ambiental (Cf. PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente : meio ambiente, patrimônio cultural, ordenao do território e biossegurana (com a anlise da Lei 11.105/2005), p. 127).
  26. PACHECO FIORILLO, Celso Antonio, ob. cit., p. 22.
  27. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. So Paulo: Malheiros, 2000, p.436.
  28. Idem, p. 437.
  29. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1148-1149.
  30. Idem, p. 1149.
  31. PRADO, Luiz Regis. Direito penal ambiental : problemas fundamentais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 56.
  32. Como regra, os constitucionalistas no enfrentam a questo atinente aos contornos do conceito de ambiente, sendo rara a aluso a tais aspectos. Contudo, quando Uadi Lammgo Bulos enfatiza que meio ambiente complexo de relaes entre o mundo natural e os seres vivos, afasta a possibilidade de considerar aspectos artificiais ou culturais na delimitação desse bem jurdico (BULOS, Uadi Lammgo. Constituio Federal anotada. 3. ed. rev. e atual. So Paulo: Saraiva, 2001, p. 1262).
  33. LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. Trad. Sandra Valenzuela. So Paulo: Cortez, 2001, p. 147-148.
  34. ODUM, Eugene P., op. cit., p. 2.
  35. LEFF, Enrique, op. cit., p. 32.
  36. PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente : meio ambiente, patrimônio cultural, ordenação do território e biossegurana (com a anlise da Lei 11.105/2005). So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 127-128.
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