Advogado Ambiental
Promotor de Justiça do Meio Ambiente (1987-2023)
Vice-Presidente da CETESB (2011-2016)
Prefeito de Presidente Prudente (2017-2020)
Mestre em Direito Penal
Nossas cidades, diferentemente do que ocorreu com a maioria das cidades europeias, não testemunharam guerras e destruições e, por isso, não tiveram a necessidade de reviver em épocas sucessivas. Da mesma forma, o Brasil não conheceu a Idade Média, que foi muito importante para a história das cidades do velho continente.
As cidades são testemunho de um passado, embora muitas vezes apenas um testemunho parcial de seu tempo porque não foram construídas com materiais nobres, resistentes às intempéries, e por isso não se manteve em pé. Pouco se sabe das habitações do povo, do agricultor, do escravo, construídas com palha, madeira e argila. Ou simplesmente não existe mais porque deu lugar a novas construções, e assim perdeu-se no tempo qualquer referência de um determinado local e do modo de viver de seus habitantes.
O processo de urbanização atual faz com que o crescimento das cidades não seja acompanhado pelo crescimento de oferta de serviços públicos. Há uma preocupação nobre em disponibilizar moradias populares para a população de baixa renda, mas equipamentos e serviços públicos como escolas, postos de saúde, transporte coletivo e outros não chegam junto com as moradias. A população, atraída pelo desejo de realizar o sonho de ter sua casa, acaba não encontrando condições adequadas de habitação, educação, saúde, saneamento e mobilidade urbana.
Cidades demasiadamente horizontais tendem a agravar esse problema, pois o processo de urbanização que comumente se verifica, especialmente nas grandes cidades do interior, leva para cada vez mais longe a população, criando novas demandas por serviços públicos.
A reabilitação ou requalificação urbana pode, em boa medida, evitar a expansão desnecessária da cidade, inclusive com ações de intervenção em áreas centrais degradadas, muitas vezes preservando edificações de interesse cultural, especialmente por conta de seu valor histórico e/ou arquitetônico.
Intervenções urbanas em áreas centrais degradadas ou concebidas com pouca preocupação estética e sem priorizar o pedestre, ainda que em declínio por conta da concorrência de grandes centros comerciais, implicam na geração de conflitos. Há uma natural resistência ao novo, apesar da oportunidade de se requalificar uma área de modo a torná-la mais atraente e confortável para o público. Aspectos desconectados com os interesses da cidade certamente sustentarão um conflito, e isso pode determinar o sucesso ou não de um empreendimento urbano capaz de resgatar ou até mesmo implantar um espaço público que garanta benefícios para toda sociedade que dele se beneficiará, incluindo aí os que sustentam o conflito.
Boa parte das nossas cidades já nasceu como cidades, mesmo quando pequenas e ainda que ostentassem o nome de vila ou povoado.
O Direito Urbanístico é disciplina ainda pouco estudada no Brasil, e isso é fruto da pouca atenção que as autoridades públicas têm dispensado ao ordenamento do território, e em particular ao urbanismo, compreendido como “o conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade”. A ausência de ações governamentais destinadas a concreção dos fins do urbanismo (atividades urbanísticas) conduz ao pouco desenvolvimento da matéria.
Como regra, nas cidades brasileiras há uma completa desorganização dos espaços públicos, e isso decorre do modelo de cidade adotado na maior parte do Brasil. Desde o início do século passado, provavelmente o período de surgimento da maior parte das cidades brasileiras, quando homens e mulheres seguiam em direção ao oeste em busca de trabalho e riqueza, iam também dando origem às vilas que mais tarde se transformariam em cidades. Esses mesmos intrépidos desbravadores rabiscaram alguns traços sobre um papel e “planejaram” como seriam nossas cidades. E depois deles outros vieram e foram dando continuidade àquele mesmo padrão de organização dos espaços, invariavelmente concebendo ruas estreitas, calçadas com dimensões insuficientes para comportar o fluxo de pedestres, poucas praças e áreas verdes, e permitindo a construção de moradias e estabelecimentos comerciais em terrenos pequenos, como se território para expansão não houvesse.
Ainda que dezenas de anos tenham transcorrido desde então, o que foi feito para mudar essa realidade?
Quase nada!
Embora nas cidades se concentrem os poderes político, religioso e social, não temos nenhuma tradição no tocante à ação governamental no campo do planejamento urbano, e com isso a população começa a sentir mais intensamente as conseqüências de um processo de urbanização caótico.
É uma realidade que interesses econômicos e políticos quase sempre são prevalentes no momento em que se decide, por exemplo, sobre o uso e ocupação do solo urbano, ignorando-se que a cidade, como beleza inventada pelo homem, deve servir ao bem comum. Nestes casos, cai no mais profundo esquecimento o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular, verdadeiro axioma do ordenamento jurídico pátrio, a significar que o interesse coletivo deve prevalecer sobre interesses individualmente considerados.
A política urbanística tem por objetivo garantir a segurança das edificações, bem como a respectiva salubridade, e assegurar tanto a qualidade estética dos edifícios como o ordenamento racional de cada aglomerado urbano. Contudo, basta lançar um olhar sobre as cidades para se constatar absoluta ausência de ações governamentais nesse sentido. Vivemos em cidades espremidas, nem parecendo que o Brasil é um país de dimensão continental. Permite-se tudo em nossas cidades: desdobro de lotes em desconformidade com o projeto de loteamento anteriormente aprovado; ocupação das praças públicas para o exercício de atividades que não são típicas de uma área dessa natureza; rebaixamento de guias em desconformidade com a lei; transformação de canteiros centrais em estacionamentos; criação de “bolsões de estacionamentos” estrategicamente localizados em parques ou praças para benefício de determinadas pessoas ou empresas; doação de áreas institucionais e de lazer para inúmeras finalidades, em total afronta à lei; ocupação de fundos de vales; descaracterização de espaços públicos e privados que têm valor cultural; abertura de ruas e avenidas sem prévia aprovação dos órgãos responsáveis, criando-se assim um novo loteamento (clandestino); diminuição da largura dos passeios públicos para dar mais espaço para os veículos (e o pedestre que se vire!), e inúmeras outras irregularidades.
Uma adequada ordenação dos espaços (rurais ou urbanos, abertos ou fechados) destinados às mais variadas atividades humanas, bem como daquelas áreas que tenham agregado um interesse especial (ambiental, urbanístico, cultural etc.), somente será realizável por meio de políticas públicas que contemplem um planejamento voltado para uma melhor repartição geográfica das atividades econômicas, quer num plano de maior abrangência (regional ou nacional), quer num plano mais restrito, circunscrito à construção racional da cidade (plano urbanístico), que leve em conta a necessidade de ser garantido o bem-estar de seus habitantes.
Enquanto esses aspectos forem ignorados pelos gestores públicos e pela população, continuaremos presenciando um urbanismo às avessas, uma verdadeira arquitetura da desconstrução das cidades.
Não pode ser esse o modelo de cidade que queremos para nossa descendência e para nós mesmos.
A cidade deve refletir as qualidades de seus moradores. Uma sociedade apática produzirá uma cidade sem brilho. Somos nós, cidadãos urbanos, que damos alma à cidade.
- MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 378.