19/09/2025 48 min de leitura

A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Nelson R. Bugalho
Advogado Ambiental
Promotor de Justiça do Meio Ambiente (1987-2023)
Vice-Presidente da CETESB (2011-2016)
Prefeito de Presidente Prudente (2017-2020)
Mestre em Direito Penal

Sumário:
1- Introdução.
2- O Sistema Nacional do Meio Ambiente.
3- O papel do Ministério Público na defesa do ambiente.
4- A tutela preventiva do ambiente pelo Ministério Público.
5- A tutela preventiva do ambiente realizada no âmbito do inquérito civil;
5.1- O termo de ajustamento de conduta;
5.2- A recomendação.
6- Considerações finais.

1. INTRODUÇÃO

    O vertiginoso aumento das atividades industriais foi provocado basicamente pelo acentuado crescimento demográfico e pela massificação do consumo. Isso tem provocado os mais variados efeitos no ambiente, tais como a contaminação do ar, das águas e do solo, o comprometimento das paisagens, a destruição da flora e da fauna, a ruína do patrimônio cultural constituído por bens de natureza material, o comprometimento da saúde e bem-estar do homem, além de criar condições adversas às atividades sociais e econômicas.

    Dois fatores básicos são apontados por Günter Fellenberg como causadores da poluição ambiental: um deles está associado à tendência do homem à mecanização, para a transformação de matérias-primas de forma a torná-las úteis para si, sendo que durante esse processo há geração de quantidades apreciáveis de resíduos inúteis, que comprometem a qualidade ambiental. Além disso, no processo de industrialização não é consumida apenas a energia do próprio corpo humano, mas sobretudo de energias provenientes de outras fontes. A produção de energia está também associada à poluição do ambiente; a segunda causa reside no contínuo aumento da população, que obriga uma crescente produção de alimentos, e como a área de terras cultiváveis não pode crescer no mesmo ritmo que a população, o necessário aumento de produção só pode ser atingido mediante uma intensificação da agricultura nas áreas já disponíveis. Para tanto, emprega-se cada vez mais fertilizantes, além de substâncias químicas para a proteção das plantas cultivadas contra pragas de origem vegetal ou animal. Neste contexto, a fabricação e o uso de fertilizantes e praguicidas constituem-se num importante componente da poluição ambiental.

    Evidente que outros fatores contribuem também para o crescente aumento da poluição, tais como o desordenado crescimento das cidades, o lançamento de esgotos domésticos sem prévio tratamento em corpos d’água, a disposição inadequada dos resíduos domésticos, as “queimadas” e tantos outros.

    A poluição, especialmente a decorrente das atividades industriais, há muito tempo deixou de ser um problema respeitante a determinada comunidade, direta e mais rapidamente afetada, e passou a ser uma preocupação globalizada, até mesmo porque o fenômeno geralmente não respeita fronteiras, e suas conseqüências são sentidas em lugares distantes, em proporções nunca antes imaginadas, a exemplo do aquecimento global, fenômeno que vem sendo sentido em todos os cantos do planeta, tal qual o qualificativo designa. Em recente pronunciamento a respeito da Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável, o Papa João Paulo II exortou a humanidade para que ela assuma suas responsabilidades ante Deus, no sentido de “salvaguardar a criação”, para que encontre um caminho eficaz para um desenvolvimento integral do ser humano, levando em conta sua dimensão econômica, social e ambiental. 

    A preocupação desse influente líder religioso é, na verdade, um alerta para o imperativo do desenvolvimento, tal qual ele foi concebido e vem sendo praticado há pelo menos um século. A compatibilização do desenvolvimento sócio-econômico com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico deve ser o objetivo de todas as nações.

    O desenvolvimento econômico sem respeito à capacidade de suporte dos ecossistemas e à base de constantes e graves ataques ao patrimônio ambiental sempre esteve amparado em justificativas não mais aceitáveis: a geração de empregos e de impostos. Poluição sempre foi sinônimo de progresso, de desenvolvimento. Só recentemente as pessoas têm despertado para o perigo concreto que a poluição representa para a sua saúde e bem-estar, não importando que para isso seja necessário sacrificar postos de trabalho ou diminuir a geração de impostos. Klaus Tiedemann, citando um julgado da Corte Suprema alemã a respeito de uma indústria que emanava gases e causava danos à saúde da população residente até 300 metros da fábrica, enfatizou que não há como justificar que se ponha em risco a saúde das pessoas a pretexto de se manter a produção e a conservação dos postos de trabalho, sob pena de a continuidade da atividade industrial e nociva à saúde constituir-se num abuso de direito.

    A poluição deve constituir-se num fator limitador da atividade econômica, não importando que esta decisão implique no sacrifício de postos de trabalho, isso porque a integridade do patrimônio ambiental é interesse de natureza supraindividual, justificando-se inclusive a intervenção do Direito Penal para sua proteção, especialmente quando se verifica que o controle meramente administrativo não tem se revelado apto o suficiente para coibir os abusos hodiernamente tão presentes.

    2. O SISTEMA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE

    A palavra sistema significa conjunto de partes coordenadas entre si ou o conjunto de partes unidas por alguma forma de interação ou dependência. A compreensão de um sistema é contextual, não podendo ser compreendido de forma analítica, compartimentada.

    O Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) é, nos termos do art. 6º da Lei n. 6938/81, constituído pelos órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Município, bem como pelas fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental. Esse mesmo artigo estrutura o SISNAMA da seguinte forma:

    1. Órgão superior: o Conselho de Governo, com a função de assessorar o Presidente da República na formulação da política nacional e nas diretrizes governamentais para o meio ambiente e os recursos ambientais;
    2. Órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com a finalidade de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida;
    3. Órgão central: o Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de planejar, coordenar, supervisionar e controlar, como órgão federal, a política nacional e as diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente;
    4. Órgão executor: o IBAMA;
    5. Órgãos seccionais: órgãos ou entidades estaduais responsáveis pela execução de programas, projetos e pelo controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental;
    6. Órgãos locais: órgãos ou entidades municipais responsáveis pelo controle e fiscalização de atividades capazes de provocar degradação ambiental, nas suas respectivas jurisdições.

    A Lei n. 6938/81 estabelece ainda quais são os instrumentos da PNMA, sendo que ao lado do estabelecimento de padrões de qualidade ambiental, do zoneamento ecológico e outros mais, prevê o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras. 

    O art. 10 da LPNMA determinou que “a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento por órgão estadual competente, integrante do SISNAMA, sem prejuízo de outras licenças exigíveis”. Esta norma foi regulamentada pelo Decreto n. 99.274/90, que estabeleceu como degraus do processo de licenciamento a licença prévia (LP), a licença de instalação (LI) e a licença de operação (LO).

    A lei é incisiva ao afirmar que a outorga das licenças ambientais é da competência dos órgãos estaduais integrantes do SISNAMA, sem detrimento de outras licenças legais necessárias.

    Portanto, porque não integra o Ministério Público o SISNAMA, evidentemente não é a instituição órgão responsável pelo licenciamento, nem tampouco a lei prevê sua participação nesse processo. Contudo, como se verá, tal omissão não é óbice à intervenção do Parquet no processo de licenciamento ambiental.

    3. O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA DEFESA DO AMBIENTE

    A Carta Constitucional contempla um rol de direitos no art. 5º, havidos como essenciais para a promoção do bem-estar social, econômico e cultural dos cidadãos. Não se trata, contudo, de um elenco numerus clausus. O seu § 2º, ao prever que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”, sinaliza que podem ser havidos também como direitos fundamentais outros previstos no texto constitucional, cuidando-se, pois, de uma norma constitucional aberta. Certamente não será qualquer direito que será elevado à categoria de direito fundamental, mas sim apenas aqueles que guardem alguma conexão com um daqueles expressamente previstos no citado art. 5º. Dessa forma, quando o caput do art. 5º assegura a inviolabilidade do direito à vida, certamente não está só proibindo a pena de morte, até mesmo porque há dispositivo expresso nesse sentido (CF, art. 5º, XLVI, a). Pretendeu o constituinte assegurar um direito à vida com dignidade, conclusão esta orientada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, declarado como um dos princípios fundamentais de um Estado Democrático de Direito, como é a República Federativa do Brasil (art. 1º, III).

    Neste contexto, e discorrendo sobre o objeto da tutela ambiental, avalia José Afonso da Silva que o objeto da tutela jurídica não é tanto o ambiente considerado em seus elementos componentes, posto que na verdade, “o que o direito visa proteger é a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida. Pode-se dizer que há dois objetos de tutela, no caso: um imediato, que é a qualidade do meio ambiente, e outro mediato, que é a saúde, o bem-estar e a segurança da população, que se vê sintetizado na expressão qualidade de vida”.

    Dessa forma, declarando a Constituição que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e, na seqüência, qualificando esse direito como essencial à sadia qualidade de vida (art. 225, caput), infere-se que o direito insculpido no artigo em referência é um desdobramento do direito à vida previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal. Cuida-se, portanto, de um direito fundamental, cuja tutela não poderia jamais prescindir da atuação do Ministério Público.

    Coube ao Ministério Público, na ordem constitucional em vigor, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127, caput), sendo uma de suas funções institucionais a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, III).

    Nesse contexto, cumpre ressaltar que o Ministério Público possui legitimidade para promover ação civil pública visando a à anulação de atos administrativos irregulares e lesivos a qualquer interesse difuso ou coletivo, sobretudo diante de postura comissiva ou omissiva do Estado na implementação dos direitos sociais, na prestação de serviços públicos essenciais, na execução de obras públicas de interesse social, no exercício do poder de polícia, enfim, na proteção de bens relevantes da sociedade. Soma-se a isso a titularidade exclusiva da ação penal pública para a responsabilização do funcionário público por crimes contra a Administração Pública.

    A defesa do ambiente foi conferida constitucionalmente a toda coletividade e ao Poder Público (CF, art. 225, caput), mas especialmente ao Ministério Público. Apesar disso, o confronto que se estabelece entre aqueles que poluem e os que têm a missão institucional de promover a defesa do ambiente é desigual. O poluidor, que personifica o poder econômico, invariavelmente conjuga seus esforços com o poder político. Essa conjugação de forças sempre existiu e continuará existindo, e não fosse a Constituição atribuir ao Ministério Público o dever de defender o ambiente, certamente o comprometimento da integridade do patrimônio natural estaria num estágio muito mais avançado.

    O Ministério Público, na defesa desse patrimônio comum da humanidade, deve ter postura intransigente. Intransigente no sentido de não admitir concessões que possam comprometer a integridade desse bem jurídico, posto que pertinente a toda coletividade. Não há óbice algum fazer o Parquet concessões, desde que atendidos critérios técnicos recomendáveis ao caso. De qualquer forma, em toda e qualquer concessão se impõe a observância aos princípios que regem a Administração Pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), e isso não implica abrir mão de uma eficiente defesa do ambiente. Na verdade, significa não permanecer alheio a um dos anseios mais urgentes da sociedade: a geração de empregos. Assim, se de um lado deve ser perseguida a preservação do patrimônio ambiental, de outro devemos conciliar esse objetivo com o desenvolvimento econômico, especialmente num país onde a pobreza é o seu maior flagelo. 

    Preservação dos recursos naturais e desenvolvimento econômico não são objetivos inconciliáveis. Muitas vezes a adoção de mecanismos anti-poluentes no processo produtivo de uma empresa se revela um imperativo para que ela participe de um mundo cada vez mais globalizado e preocupado com a questão ambiental. Não se concebe mais a implantação de políticas públicas que estejam apenas voltadas para o desenvolvimento econômico e social à custa de acelerada e, muitas vezes, irreversível degradação dos recursos naturais, acarretando sensível perda da qualidade de vida e pondo em risco a própria sobrevivência do gênero humano. A exploração dos recursos naturais deve estar limitada à capacidade de suporte dos ecossistemas, e o comprometimento da qualidade ambiental deve constituir-se num fator limitativo desse modelo de desenvolvimento.

    A constatação de um dano ambiental ou o perigo deste vir a se concretizar certamente é a razão imediata da adoção de medidas (administrativas e/ou judiciais) pelo Ministério Público. Em muitos casos, contudo, não é improvável que estejam presentes razões mais transcendentes, objetivando-se também questionar o modelo tecnológico e de crescimento econômico adotado. Um crescimento econômico – e não desenvolvimento – que não consegue gerar riquezas sem que, ao mesmo tempo, também gere pobreza e deterioração da qualidade ambiental, não é um modelo ideal. 

    4. A TUTELA PREVENTIVA DO AMBIENTE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

    Importante ressaltar que o bem jurídico ambiental é público porque está à disposição de todos os cidadãos, daí também a razão de ser bem de uso comum do povo, e porque corresponde a uma finalidade pública, em conseqüência do que sua tutela tem um caráter também público e pertence não só ao Estado, mas também à coletividade.

    Em razão da magnitude do bem jurídico ambiente, imperiosa a adoção de medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas que possam comprometer a qualidade ambiental, especialmente quando existirem ameaças de danos sérios e irreversíveis. A adoção dessa postura é dever imposto não só àquele que explora recursos naturais, mas também aos órgãos ambientais responsáveis pelo licenciamento e fiscalização.

    Esse cuidado que deve ser dispensado ao bem jurídico ambiente é imposto a todos por força de mandamento constitucional. Está implícito no art. 225 da CF o princípio da prevenção, sobretudo quando assinala: a) a necessidade de realização de estudo de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente; b) a publicidade que deve ser dada ao referido estudo, evidenciando a necessidade de participação popular (audiências públicas); c) o dever de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; d) o dever de promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; e) o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.

    O princípio da prevenção se desdobra ainda no princípio da precaução, embora nem sempre tal distinção seja feita. A esse respeito, pontifica Luis Roberto Gomes que:

    “(…) a distinção é válida, na medida em que, embora realmente haja proximidade, nexo e relação de geral para específico, a diferença entre o princípio da prevenção e o da precaução é marcante. Com efeito, embora no precaver resida subjacente o prevenir, naquele reside um plus consistente na tomada de cautela em razão da inexistência de certeza científica absoluta sobre os efeitos que determinada atividade pode provocar no meio ambiente”. 

    A esse respeito pontifica Annelise Monteiro Steigleder que o princípio da precaução recomenda ponderação e cautela diante de perigos ainda não conhecidos, mas prováveis, tudo indicando a necessidade de estudos científicos que investiguem a correta dimensão destes perigos, ao passo que o princípio da prevenção supões riscos já conhecidos e, por isso mesmo, impõe a adoção de medidas preventivas visando evitar a produção do dano ou a sua repetição.

    Dessa forma, na prevenção procura-se evitar a realização de conduta sabidamente lesiva ao ambiente ou então são determinadas medidas mitigadoras do dano, conhecendo-se antecipadamente os efeitos danosos que fatalmente ocorrerão, sendo que na precaução procura-se evitar justamente a realização da conduta porque suas conseqüências não são bem conhecidas no presente. 

    Quando falham as medidas de precaução, ou mesmo diante de sua completa inexistência, e isso não é incomum, certamente haverá violação à parcela do ordenamento jurídico responsável pela tutela do ambiente. A lesão ou exposição a perigo de lesão do patrimônio ambiental poderá acarretar sanções de três ordens: administrativa, civil e penal. Importa para a presente análise a responsabilidade civil ambiental, sobretudo o momento anterior à produção do dano, isto é, do mero risco. 

    No Brasil, embora a Lei n. 9.605/98 tenha previsto a possibilidade da imposição de multas administrativas que variam de R$ 50,00 (cinqüenta reais) a R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais), invariavelmente são aplicadas multas irrisórias, insuficientes para reprimir e prevenir novos ataques ao ambiente. Multas de maior vulto e medidas mais drásticas (a exemplo da suspensão parcial ou total de atividades ou a interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade) nem sempre são aplicadas pelos órgãos ambientais que detém o poder de polícia.

    As outras esferas de atuação do Direito Ambiental – civil e penal – acabam quase sempre ficando sob a responsabilidade do Ministério Público. Em se tratando de crimes contra o ambiente, porque o exercício da ação penal não se subordina a qualquer requisito e a sua titularidade foi conferida ao Ministério Público, certamente cabe a esta instituição a promoção da ação penal (pública), salvo a hipótese de ação penal privada subsidiária da pública, nos termos do que dispõe o art. 100, § 3º, do Código Penal. Neste contexto, relevante considerar que embora o Direito Penal constitua-se num importante instrumento de defesa do ambiente, importa mais para o Ministério Público a obtenção da reparação do dano (que pode ser obtida na esfera criminal) do que a imposição de uma pena ao autor da agressão ambiental, salvo se o fato for de maior gravidade ou tratar-se de ação reiterada, a exigir uma pronta e eficaz resposta estatal.      

    A adoção de uma providência judicial ou extrajudicial visando a implementação de medidas tendentes a impedir ou paralisar a atividade nociva, ou a reparação do dano ambiental, também é tarefa constitucionalmente atribuída ao Ministério Público (CF, art. 129, III). Ainda no âmbito da Constituição Federal, pode o próprio cidadão defender o meio ambiente através da ação popular constitucional (art. 5º, LXXIII). Contudo, a defesa em juízo do patrimônio ambiental não foi conferida tão-só ao Ministério Público, mas também a outros co-legitimados (Lei n. 7.347/85, art. 5º, e Lei n. 8.078/90, art. 82), que igualmente podem postular em juízo a defesa de interesses transindividuais. A respeito da legitimação, cumpre assinalar que, via de regra, tem legitimidade ordinária o próprio lesado que defende seu interesse. Sendo assim, não só o particular, como o próprio Estado, se lesado, pode provocar a jurisdição. Ao lado da legitimação ordinária, situa-se a extraordinária, que pode ser definida como a possibilidade de alguém, em nome próprio, defender interesse alheio. Essa legitimação é produto da “evolução” legislativa, representando uma inovação, isso porque durante muitos anos se fundamentou no interesse pessoal de agir. A esse respeito, pontifica Mancuso que:

    Efetivamente, como já se viu, o aspecto direto e pessoal do interesse de agir, que durante séculos acarretou a implicação entre esse interesse processual e a titularidade do direito material, vem, paulatinamente, cedendo terreno a concepções modernas, de forte cunho social, onde a necessidade do recurso ao judiciário não mais decorre do ser, do aspecto patrimonial-individual do interesse, mas deflui do ser, isto é, do dado objetivo, onde o que prevalece é a relevância social do interesse. É nessa linha que se pode reconhecer interesse de agir em tema de direitos difusos: não importa que seja indeterminado seu titular; o que conta é o fato de que o interesse em questão é socialmente relevante e, como tal, digno de proteção jurisdicional.

    É extraordinária a legitimação, por ser excepcional e depender de expressa autorização legal. Quando ocorre, configura-se verdadeira substituição processual, inconfundível com a representação que ocorre quando alguém, em nome alheio, defende o interesse alheio. Na substituição processual, alguém, que não é procurador ou mandatário, comparece em nome próprio e requer em juízo a defesa de um direito que admite ser alheio. É o que ocorre nas ações civis públicas e nas ações coletivas que se prestam à defesa dos interesses transindividuais – difusos, coletivos e individuais homogêneos – e com vistas a garantir maior efetividade na defesa do interesse violado.

    Parte da doutrina afirma, porém, a presença de legitimação ordinária ou autônoma ainda que exista, em favor de determinado indivíduo, legitimação extraordinária, uma vez que o legitimado extraordinário, a par de defender em juízo interesses de terceiros, também estaria defendendo direito próprio. Não é esse, contudo, o entendimento de Mazzilli, cuja defesa assenta-se na legitimação extraordinária ou substituição processual:

    Ainda que proceda essa argumentação, de nossa parte continuamos a identificar na ação civil pública ou coletiva a predominância do fenômeno da legitimação extraordinária ou da substituição processual, pois esse fenômeno processual só não ocorreria se o titular da pretensão processual estivesse agindo apenas na defesa de interesse material dele próprio, por ele mesmo invocado. Mas na ação civil pública ou coletiva, embora em nome próprio, os legitimados ativos, ainda que ajam de forma autônoma e, às vezes, também defendam interesses próprios, na verdade estão a buscar em juízo mais que a proteção de meros interesses próprios: o pedido formulado em ação civil pública ou coletiva não visa à satisfação apenas do interesse do autor, mas sim de todo o grupo lesado; desta forma, os legitimados ativos zelam também por interesses transindividuais de todo o grupo, classe ou categoria de pessoas, os quais não estariam legitimados a defender a não ser por expressa autorização legal. Daí porque, para que pudessem defender esses interesses transindividuais, foi preciso o advento de lei que lhes conferisse legitimação para agir em nome próprio, em favor de todo o grupo. Dessa forma, entendemos que esse fenômeno configura preponderantemente a legitimação extraordinária, ainda que, em parte, alguns legitimados ativos possam, na ação civil pública ou coletiva, também estar a defender interesse próprio, que está englobado no pedido.

    Esse é o entendimento dominante. A substituição processual é perfeitamente cabível na defesa de interesses transindividuais. Assim, ainda que indivisível o interesse, os legitimados à ação pública ou coletiva defendem interesses individuais dos integrantes do grupo lesado, ou no âmbito dos interesses difusos, defende-se igualmente os interesses de titulares não determinados e indetermináveis. 

    Embora a ação civil pública possa ser empregada de forma eficaz na prevenção e reparação de danos ambientais, importa para o presente trabalho o manejo do instrumento extrajudicial de tutela denominado inquérito civil, sob a responsabilidade do Ministério Público, que pode funcionar mais eficazmente como instrumento preventivo de defesa do ambiente. 

    5. A TUTELA PREVENTIVA DO AMBIENTE REALIZADA NO ÃMBITO DO INQUÉRITO CIVIL

    Constatado um dano ambiental, não importando a sua natureza, pode surgir a possibilidade de seu causador pretender reparar o dano, ou ainda, ajustar-se de modo a evitar a sua ocorrência ou a sua persistência. Essa possibilidade, muito comum nas questões ambientais, poderá ocorrer perante algum dos órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva, especialmente o Ministério Público, no âmbito de procedimento investigatório de natureza civil. Referidos órgãos públicos são as pessoas jurídicas de direito público interno e seus órgãos, aí não se incluindo as entidades da administração indireta. Dessa forma, não podem celebrar o compromisso as sociedades de economia mista e as empresas públicas. Tal impossibilidade se estende também, obviamente, às fundações privadas e associações civis (Lei n. 7.347/85, art. 5º, e Lei n. 8.078/90, art. 82).

    Em se tratando de violação a bem jurídico ambiental (transindividual), a solução consensual é forma de se evitar a propositura de medida judicial tendente a reparar o dano, cessar ou impedir a atividade nociva. E é justamente no âmbito do inquérito civil ou de procedimento de natureza civil similar que a solução consensual poderá ser alcançada, através da formalização de termo de ajustamento de conduta.

    O vocábulo inquérito tem sua origem do latim quaeritare, de “querer”, “andar sempre buscando”. Entende-se, portanto, por inquérito, o procedimento que se instaura e se movimenta visando procurar incessantemente informações sobre a ocorrência e autoria de um fato ilícito. Nessa linha de pensar, o inquérito civil é concebido pela doutrina da seguinte maneira:

    (…) um procedimento investigatório, de natureza administrativa e que se desenvolve extrajudicialmente, exclusivamente instaurado e presidido pelos órgãos de execução do Ministério Público, com finalidade de buscar fundamentos para o ajuizamento da ação civil pública, por meio da apuração prévia da ocorrência, extensão e autoria de fatos considerados lesivos aos interesses difusos ou coletivos ou a qualquer outro interesse transindividual”. 

    (…) uma investigação administrativa prévia a cargo do Ministério Público, que se destina basicamente a colher elementos de convicção para que o próprio órgão ministerial possa identificar se ocorre circunstância que enseje eventual propositura de Ação Civil Pública ou Coletiva.

    (…) mera peça informativa, de utilização restrita do Parquet, cujas conclusões ou mesmo o arquivamento em nada empecem a propositura da ação pelos demais co-legitimados (…). esse Inquérito é um instrumento destinado a possibilitar uma triagem das várias denúncias que chegam ao conhecimento  do Ministério  Público: somente as que resultarem fundadas e relevantes acarretarão, por certo, a propositura da ação; de todo modo, a conclusão a que chegue o Ministério Público não é vinculante para a entidade denunciante.

     (…) instrumento de colheita de provas que fornecerá os elementos de convicção para a propositura ou não da ação, inclusive da ação civil pública. Não constitui processo, mas mero procedimento em âmbito administrativo. E como tal, não está submetido ao contraditório.

    O inquérito civil é, na verdade, medida preparatória da ação civil pública, na qual o órgão do Ministério Público tem uma liberdade maior de ação naquilo que se traduz no seu poder investigatório assegurado na Carta Constitucional (art. 129, III e VI). Através desse procedimento preparatório objetiva-se evitar demandas ociosas, com gastos de tempo e dinheiro. Indiscutível que o inquérito civil cumpre um papel de prevenção e até mesmo de intimidação sobre o potencial causador de dano a interesse transindividual, de forma a desistir da atividade ou ajustar-se à legislação pertinente.

    Dessa forma, no inquérito civil são colhidos elementos de convicção que justifiquem a propositura de ação civil pública. Com esse procedimento procura-se evitar uma temerária atuação processual, lastreada em suposições ou em notícias genéricas imprecisas de lesão a um interesse socialmente relevante. Além de destinar-se à colheita de elementos visando a propositura da ação civil pública, funciona também como mecanismo de prevenção e reparação extrajudicial de danos a interesses supraindividuais, sobretudo nas questões ambientais, uma vez que geralmente o inquérito civil é finalizado com a celebração de termo de ajustamento de conduta.

    Hugo Nigro Mazzilli leciona que o inquérito civil é uma investigação administrativa sob a responsabilidade do Ministério Público, ou seja, constitui-se num procedimento investigatório informal e não contraditório, em que não se decidem interesses nem tampouco sanções são aplicadas. Apesar disso, no âmbito desse procedimento pode o órgão do Ministério Público expedir notificações e requisitar informações e documentos para instruí-lo. Em se tratando de danos ao patrimônio ambiental, deve provocar a atuação dos órgãos de fiscalização, destes exigindo o exato cumprimento da lei, que pode implicar na autuação do autor do fato e a imposição de penalidades de natureza administrativa, sobretudo quando “todos os entes federativos têm competência comum para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, sendo pacífico na doutrina que se trata, aqui, de atribuições na esfera administrativa, que incluem o poder de polícia”. Portanto, cabe ao Ministério Público exigir a estrita observância da legislação ambiental e ainda verificar eventual inércia da máquina administrativa diante do caso concreto objeto da investigação ministerial.

    Finalizado o inquérito civil, pode o Ministério Público, dependendo das informações obtidas durante a investigação e indispensáveis para a formação de sua convicção, promover o competente arquivamento do inquérito civil, ajuizar ação civil pública, formalizar a realização de termo de ajustamento de conduta ou, ainda, expedir recomendação. Destas providências, interessa para esta abordagem apenas a realização do termo de ajustamento de conduta e a expedição de recomendação.

    5.1. O TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA

    Inicialmente, cumpre ressaltar que um dos traços característicos dos interesses transindividuais é sua indisponibilidade, em face de seu significado social. Desse modo, não poderiam, a princípio, ser objeto de disposição através de transação. A esse respeito, nota Vieira que a ‘indisponibilidade’ marca tanto os interesses difusos, quanto coletivos e individuais homogêneos. Não obstante essa sua característica, leciona Mazzilli que aspectos de conveniência prática recomendaram a mitigação da indisponibilidade da ação pública. Assim, apesar do caráter de indisponibilidade do bem jurídico transindividual, admitiu a lei que poderiam tomar compromisso de ajustamento de conduta os órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva (Lei n. 7.347/85, art. 5º, § 6º).  

    O compromisso de ajustamento de conduta pode ser tomado pelos órgãos públicos legitimados (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), pelo Ministério Público, pelos órgãos públicos sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, estendendo-se, ademais, às entidades da administração indireta (autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações públicas). Ficam excluídas desse rol as associações civis, as fundações privadas e os sindicatos, sem embargo de serem legitimados para o ajuizamento da ação civil pública. Diante da enumeração legal, o compromisso obtido por outro que não um daqueles legitimados é nulo, e, portanto, sem qualquer validade. Outrossim, quando realizado por co-legitimado que não o Ministério Público, deve por esse ser ratificado sob pena de nulidade, em face de sua função de fiscal.

    Mazzilli anota as principais características do compromisso de ajustamento:

    a) é tomado por termo por um dos órgãos públicos legitimados à ação civil pública; b) não há concessões de direito material por parte do órgão público legitimado, mas sim por meio dele o causador do dano assume obrigação de fazer ou não fazer, sob cominações pactuadas; c) dispensa testemunhas instrumentárias; d) gera título executivo extrajudicial; e) não é colhido nem homologado em juízo.

    Avalia ainda Mazzilli que:

    (…) dado o caráter consensual dos compromissos de ajustamento, sua grande aplicação prática acabou permitindo ultrapassassem o campo das obrigações de fazer ou não fazer, passando a adquirir maior alcance. Não raro o órgão público legitimado e o causador do dano a interesses transindividuais ajustam quaisquer tipos de obrigação, ainda que medidas compensatórias de natureza diversa das meras obrigações de fazer, e esse ajuste é convalidado seja pelo seu caráter inteiramente consensual, seja pelo fato de que prejuízo algum traz à .defesa dos interesses lesados, já que constitui garantia mínima e não limitação máxima de responsabilidade do causador do dano.

    Aliás, em que pese não versar o ajustamento sobre direito material, esclarece Mancuso que, “à vista da relevância do interesse em lide, a verificação da conveniência e oportunidade do acordo oferecido por vezes poderá alcançar a análise, pelo Parquet, do próprio conteúdo material objeto da transação”, como ocorre, por exemplo, na aferição de se o prazo proposto guarda proporcionalidade com o tipo de providência a ser adotada pelo requerido. Na verdade, em se tratando de meio ambiente, à vista da irreversibilidade de certos danos, ou até mesmo diante de situações já consolidadas, cuja reversão poderá repercutir gravemente em aspectos pertinentes ao meio social, e até econômicos, deve o Ministério Público ponderar se a medida técnica sugerida é socialmente adequada à realidade. Esse juízo de valor, feito pelo Promotor de Justiça, evidentemente está sujeito à apreciação pelo Conselho Superior do Ministério Público, e sem dúvida alguma pode implicar em disposição de conteúdo material do litígio, embora nenhum dos legitimados, inclusive o Ministério Público, tenha a disponibilidade do direito material lesado. Restaria, nestes casos, diante de uma equivocada avaliação da solução compromissada, a implementação de medida judicial contra a formalização do ato por qualquer legitimado ou por alguém que demonstrasse efetivo prejuízo.

    A postura ora adotada decorre da simples constatação de que em toda negociação sempre é possível fazer algumas concessões, e a celebração do compromisso de ajustamento é transação, envolvendo uma prévia negociação com o causador do dano ambiental. Contudo, porque o bem jurídico objeto do contrato é difuso, isto é, respeitante a toda coletividade, algumas limitações de ordem legal existem para transigir, até mesmo porque, no âmbito do Ministério Público, o ato é complexo, exigindo a homologação do termo de ajustamento de conduta pelo Conselho Superior do Ministério Público, como já asseverado. Aliás, a respeito da eficácia do termo de ajustamento de conduta, cumpre ressaltar existir entendimento no sentido de que isso se opera “a partir do momento em que é tomado pelo órgão público legitimado – é o que se depreende do art. 5o., § 6o., da Lei da Ação Civil Pública. Sua eficácia não é efeito da homologação do arquivamento do inquérito civil, ao contrário do que indevidamente afirma o parágrafo único do art. 112 da Lei Complementar paulista n. 734/93; é questão só afeta à disciplina da União dispor sobre o momento em que se forma um título executivo”. Dessa forma, a eficácia do compromisso de ajustamento se opera, nos termos da Lei n. 7.347/85, no momento da celebração, sendo que no caso do Ministério Público, sua eficácia surge por conta de sua homologação pelo Promotor de Justiça, embora não seja esta a prática usual. Geralmente se insere uma cláusula assinalando que os efeitos só operam a partir da homologação do termo de ajustamento de conduta pelo Conselho Superior do Ministério Público.

    De qualquer forma, depois de celebrado o compromisso, pode ele ser rescindido como qualquer ato jurídico em geral, isto é, voluntariamente, pelo mesmo procedimento pelo qual foi idealizado, ou contenciosamente, através de ação anulatória.

    Em geral, as concessões são referentes aos prazos para o cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer, embora outras possam ser feitas, desde que tenham suporte técnico assim recomendando, ou quando sejam socialmente adequadas. Não só a reparação do dano pode ser exigida, mas também a sua compensação, acaso tecnicamente impossível promover a recuperação. Nestes casos, deverá a compensação ter natureza ambiental, podendo consistir em custeio de programas e de projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas, manutenção de espaços públicos, ou, ainda, contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.  

    Porque importa mais a reparação ou compensação do dano ambiental, a multa obrigatoriamente estipulada no caso de descumprimento da obrigação assumida deverá ser tal que iniba qualquer pretensão de o compromissado preferir pagar multa a adimplir o acordo. Tratando-se de multa diária, incidente enquanto não cumprida a obrigação, deverá ela guardar certa proporcionalidade com o dano e a capacidade financeira do causador do dano ambiental. É possível, até comum, não conseguir o compromissado levar a cabo a obrigação assumida no prazo convencionado, mas nem por isso estará o Ministério Público obrigado a promover a execução da multa, desde que, evidentemente, se faça um aditamento ao compromisso no sentido de prorrogar o prazo inicialmente estipulado, não observado por razões justificadas.

    Tais aspectos, além de outros não citados, acabam transformando o termo de ajustamento de conduta num importante instrumento de defesa do patrimônio ambiental. Uma outra característica que pode ser atribuída ao termo de ajustamento de conduta,  consiste no fato de, por vezes, os compromissos assumidos constituírem obrigações de relevante interesse ambiental, tendo inclusive repercussão da esfera do Direito Penal o seu descumprimento, com a caracterização do ilícito penal definido no art. 68 da Lei n. 9.605/98.

    Enfim, a indisponibilidade do bem jurídico ambiental, porque pertence à coletividade, é indicador de que deve o Ministério Público pautar-se por uma atuação responsável por ocasião da celebração do termo de ajustamento de conduta, sobretudo porque não tem disponibilidade sobre o patrimônio ambiental confiado à sua guarda. Todavia, como já afirmado, haverá casos em que o princípio da indisponibilidade deverá ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada é a que melhor atenderá à ultimação do interesse ambiental, compreendido em toda sua dimensão natural, social, cultural e econômica. 

    5.2. A RECOMENDAÇÃO

    Como já assinalado, ao finalizar o inquérito civil, pode o membro do Ministério Público propor ação civil pública ou, ainda, promover o seu arquivamento, seja porque não ficou evidenciada a responsabilidade civil ambiental, seja porque foi formalizado termo de ajustamento de conduta com o investigado. Contudo, durante a tramitação daquele procedimento, ou mesmo quando encerradas as investigações, dependendo das informações técnicas colhidas, pode o Ministério Público expedir recomendação, sobretudo aos órgãos da Administração Pública responsáveis pela fiscalização e/ou licenciamento ambiental, uma vez que estes, no exercício do poder de polícia do qual são detentores, podem pôr fim à lesão ambiental ou evitar a sua ocorrência. A esse respeito, ensina Luís Roberto Gomes:

    A recomendação consiste num ato formal não coercitivo dirigido ao investigado, no qual é expressamente traduzida a vontade da ordem jurídica pelo Ministério Público, que toma posição e sugere a realização de determinada conduta referente a um caso concreto, com o escopo de atingir finalidade de interesse público primário com propósito expresso ou subjacente na Constituição e nas leis.

    Paulo Affonso Leme Machado avalia que:

    “As recomendações não têm a mesma natureza das decisões judiciais, mas colocam o recomendado, isto é, o órgão ou entidade que as recebe, em posição de inegável ciência da ilegalidade de seu procedimento. Entregues as recomendações, prosseguindo o recomendado em sua atividade ou obra, caracteriza-se seu comportamento doloso, com reflexos no campo do Direito Penal ambiental. As recomendações ambientais deverão ser imediatamente divulgadas por quem as recebe, como, também, deverão ser respondidas”.

    No contexto ambiental, Leme Machado exemplifica que as recomendações poderão ser expedidas em diversas situações, até mesmo “para que o órgão público ambiental não expeça a licença, a autorização ou a permissão enquanto o inquérito civil não termine”. 

    Enfim, cumpre assinalar que a recomendação não é ordem, razão pela qual não obriga o recomendado, não acarretando-lhe nenhuma conseqüência jurídica automática decorrente do não atendimento da recomendação. Contudo, a recomendação é uma advertência, um conselho, uma sugestão para que seja adotada determinada postura diante de um fato lesivo ou que possa resultar dano ao patrimônio ambiental. Nesse instrumento o Ministério Público indica a conduta a ser realizada ou omitida com base nos elementos de convicção existentes no procedimento investigatório civil que preside, visando a estrita observância do ordenamento jurídico.

    Embora não tenha caráter vinculante, a autoridade destinatária da recomendação deve ser advertida de que medidas de natureza civil ou até mesmo penal poderão ser adotadas acaso não seja acatado aquilo que foi recomendado. Também por conta disso, afirma-se que:

    (…) as recomendações obrigam os agentes públicos a responder fundamentadamente ao Ministério Público, apresentando razões políticas ou jurídicas que justificam determinada ação ou omissão, cria-se uma relação jurídica de vinculação aos motivos determinantes que pode municiá-lo de fundamento para acionar o controle jurisdicional caso comprovada a improcedência técnica, a falsidade ou a ilegalidade do que for invocado para justificar a conduta administrativa. 

    Como lembra Luís Roberto Gomes, citando Hely Lopes Meirelles, invoca-se no caso a chamada teoria dos motivos determinantes, que se funda na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos, exigindo-se perfeita correspondência entre eles e a realidade. Esse raciocínio é adotado até mesmo quando se tratar de atos discricionários, que, “se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e se sujeitam ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados”.

    O perfil constitucional do Ministério Público revela que suas atividades se revestem de interesse público relevante, sobretudo em se tratando da defesa dos interesses transindividuais. Não só por conta disso, mas também em razão da eficiência que a Instituição tem demonstrado em sua atuação, as recomendações acabam impregnadas de grande poder de persuasão, geralmente atingindo seu objetivo, que nada mais é do que interferir na condução da administração pública no interesse maior da coletividade. Assim, à título de ilustração, verificando o Ministério Público que determinada obra causadora de significado impacto ambiental poderá ser licenciada sem exigência de estudo de impacto ambiental, porque está inclinado o órgão ambiental competente a dispensar sua realização, pode este ser recomendado a rever sua posição, visando conferir ao licenciamento a regularidade que o ordenamento jurídico exige, sob pena de responsabilização por improbidade administrativa e por crime contra a administração ambiental, uma vez que constitui crime conceder o funcionário público licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja realização depende de ato autorizativo do Poder Público (Lei n. 9.605/98, art. 67). O atendimento a recomendação dessa natureza evitará provável lesão ao patrimônio ambiental sem necessidade de implementação de medida judicial, cujo sucesso estaria na dependência de respaldo do Poder Judiciário, pouco sensível às questões ambientais.    

    A ingerência que se faz através da recomendação é um exemplo característico de participação do Ministério Público na formulação de uma política pública ambiental, visando justamente evitar a via jurisdicional e levar à consideração do administrador aspectos legais que não estão sendo observados na condução de determinado assunto. Outras vezes, soma-se a esses aspectos legais, reclamos legítimos da comunidade, atuando o Ministério Público como verdadeiro veículo de ligação entre os agentes sociais e o Poder Público.

    Importante considerar que no exercício da defesa dos direitos assegurados na Constituição Federal poderá o Ministério Público expedir recomendações, como aliás está previsto na Lei Complementar n. 73/93, “visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis” (art. 6º, XX). Enfim, no contexto da tutela do patrimônio natural, em que a conduta nociva ao ambiente é geralmente praticada rápida e clandestinamente, às vezes ocasionando danos irreversíveis, a recomendação revela-se num importante instrumento de atuação extraprocessual do qual o Ministério Público não pode abdicar.

    6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

    A consagração jurídico-constitucional que o ambiente recebeu, sobretudo quando se atenta que a Carta Constitucional acolheu o ambiente como direito fundamental dos cidadãos e também atribuiu ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, indica a necessidade de uma proteção jurisdicional efetiva, objetivo ainda não alcançado por conta da predominância de posições conservadoras dentro do próprio Poder Judiciário, apesar da flexibilização dos critérios da legitimidade processual clássica, de forma a configurar o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental judicialmente acionável por inúmeros co-legitimados.

    Como observado por José Eduardo de Oliveira Figueiredo Dias, ao discorrer sobre a proteção jurisdicional efetiva e o ambiente no direito português, perfeitamente aplicável à nossa realidade:

    A grande conclusão a tirar do tratamento que levámos a cabo é a de que a nossa Constituição permite (e insistentemente sugere) a conveniência ou mesmo a necessidade de uma abertura decidida a um sistema mais lato de protecção, sobretudo jurisdicional (e dizemos sobretudo não só por radicar nela o núcleo das nossas preocupações, mas também porque essa protecção é a mais intensa em ordenamentos jurídicos como o nosso), do direito do ambiente. Protecção que assim se tornará, ela própria, muito mais profunda e eficaz do que a que até aqui tem sido possível, bastando para tal que o legislador ordinário e a jurisprudência (sem esquecer o papel da Administração Pública e da doutrina) se decidam a tornar exequíveis os preceitos constitucionais pertinentes. Necessidade esta, de resto, que se não faz sentir de modo específico apenas em sede ambiental; sabido como é que, sendo a Constituição da República Portuguesa, pelo menos em determinados sectores, generosa e arrojada na previsão dos direitos dos cidadãos, torna-se mais notória, em certos domínios, a ausência de acompanhamento por parte do legislador ordinário e também, na medida legítima possível, dos próprios aplicadores do direito.

    Uma maior efetividade na proteção do patrimônio ambiental é o anseio do Ministério Público, das entidades do Terceiro Setor dedicadas à causa ecológica e das pessoas que reconhecem a necessidade de estarem inseridas num ambiente ecologicamente equilibrado. Talvez, num dia não muito distante, essa preocupação se estenderá a toda a comunidade planetária, algo hoje impensável porque evidente o pouco interesse nestas questões por parte da maioria dos legisladores, dos administradores públicos e dos aplicadores do direito. Indiferença verificável nas sociedades de todos os tempos e lugares, apesar do traço característico desse interesse transindividual: a sua indisponibilidade, em razão de sua inegável dimensão social. 

    Esses aspectos revelam a importância que o inquérito civil, o termo de ajustamento de conduta e a recomendação representam na proteção do patrimônio ambiental (e também de outros interesses difusos), isso porque constituem instrumentos de controle extraprocessual, sem ingerência direta daqueles que não estão na vanguarda da tutela desse patrimônio da humanidade que é o meio ambiente.

    1. Introdução aos problemas da poluição ambiental. Trad. Juergen Heinrich Maar. São Paulo: EPU, 1980, p.1-2. 
    2.  El concepto de derecho economico, de derecho penal economico y de delito economico, in Cuadernos de Política Criminal. Madrid: Edersa, 1986, p.69.
    3.  Direito ambiental constitucional, 2a ed. São Paulo: Malheiros, p. 54.
    4.  BENJAMIN, Antonio H. Vasconceslos (coord.). Dano ambiental, prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 74-75.
    5.  O Ministério Público e o controle da omissão administrativa: o conceito da omissão Estatal no direito ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 189.
    6.  Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no Direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 188-189.
    7.  Assinala Paulo de Bessa Antunes que o art. 5º da Lei nº 7.347/85 representa uma inovação já que o Código de Processo Civil, em seu art. 6º estabelece que: ninguém poderá pleitear em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Para ele foi trazida pela lei a figura do substituto processual (ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 483).
    8.  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 117-8.
    9.  Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 54.
    10.  Ob. cit., p. 55.
    11.  Ver a respeito NOGUEIRA DA CRUZ, Ana Paula Fernandes. O Ministério Público e a tutela preventiva dos interesses metaindividuais: o papel do inquérito civil, in  Revista de Direito Ambiental, n. 30. Coordenador: Antônio Herman Benjamin e Édis Milaré. São Paulo: RT, 2003, p. 198-213.
    12.  ALVARENGA, Paulo. O Inquérito Civil e a proteção ambiental. Leme: BH editora, 2001, p. 104
    13.  MAZZILLI, Hugo Nigro. O Inquérito Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 104.
    14.  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores (Lei 7.347/85 e legislação complementar). 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 127
    15.  OLIVEIRA, Francisco Antônio. Ação Civil Pública: enforques trabalhistas. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 175.
    16.  MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 15ª ed. São Paulo: Saraiva 2002, p.338-339.
    17.  MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. São Paulo: RT, 2000, p. 262.
    18.  VIEIRA, Fernando Grella apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do Meio Ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores (L. n. 7.347/85 e legislação complementar). 7 ed., ver. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.  
    19.  MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo – Meio Ambiente, Consumidor, Patrimônio Cultural, Patrimônio Público e outros interesses. 15ª ed. rev., ampl. e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 301.
    20.  MAZZILLI, Hugo Nigro. Op. cit., p. 307.
    21.  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do Meio Ambiente, do patrimônio cultural e dos Consumidores (Lei. n. . 7.343/85 e legislação complementar). 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 233.
    22.  MAZZILLI, Hugo Nigro. Op. cit., p. 309.
    23. Idem, ibidem, p.
    24.  MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 229.
    25.  MAZZILLI, Hugo Nigro. O inquérito civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 311.
    26.  Mazzilli aponta como principais características do compromisso de ajustamento de conduta: “a) é tomado por termo por um dos órgãos públicos legitimados à ação civil pública; b) nele não há concessões de direito material por parte do órgão público legitimado, mas sim por meio dele o causador do dano assume obrigação de fazer ou não fazer, sob cominações pactuadas; c) dispensa testemunhas instrumentárias; d) gera título executivo extrajudicial; e) não é colhido nem homologado em juízo” (A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. Ob. cit., p. 309).
    27. Lei n. 9.605/98:
      Art. 68: Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental.
      Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
    28. O Ministério Público e o controle da omissão administrativa: o controle da omissão estatal no direito ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 237.
    29. Direito ambiental brasileiro. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 352-353.
    30.  Ob. cit., p. 353.
    31. GOMES, Luís Roberto. Ob. cit., p. 238.
    32.  Ob. cit., p. 239.
    33.  MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 182.
    34.  GOMES, Luís Roberto. Ob. cit., p. 245.
    35. FIGUEIREDO DIAS. José Eduardo de Oliveira. Tutela ambiental e contencioso administrativo (da legitimidade processual e das suas consequências). Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 92-93.
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