Nelson R. Bugalho
Advogado Ambiental
Promotor de Justiça do Meio Ambiente (1987-2023)
Vice-Presidente da CETESB (2011-2016)
Prefeito de Presidente Prudente (2017-2020)
Mestre em Direito Penal
I- Introdução
A Declaração Universal dos Direitos Humanos declara que toda pessoa tem direito à segurança social e à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade (artigo XXII), assim como declara que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar (artigo XXV), direito à instrução gratuita pelo menos nos graus elementares e fundamentais (artigo XXVI) e muitos outros direitos compatíveis com a afirmação contida em seu preâmbulo de que a dignidade é inerente a todos os membros da família humana e que seus direitos são iguais e inalienáveis, constituindo-se isso no fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.
A Declaração, aprovada em 10 de dezembro de 1948, “consolida a afirmação de uma ética universal, ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados”, e “objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais”.
A Declaração Universal deve ser a inspiração para todos aqueles que tenham em suas mãos o poder de ditar os rumos de uma nação, isso porque parte da premissa de dignidade é inerente a toda pessoa humana. Só por esta razão, não há equívoco algum na afirmação de que missão primeira dos governantes é implementar um plano que viabilize um consistente crescimento econômico e garantir, ao mesmo tempo, um crescente índice de desenvolvimento humano, promovendo a erradicação da pobreza e do analfabetismo, dispensando a necessária atenção à saúde pública, garantindo o lazer e a segurança, impedindo a degradação do ambiente e eliminando ainda outros fatores que de forma direta ou indireta comprometam ou possam comprometer a conquista do almejado desenvolvimento socioeconômico.
Apesar dos esforços empreendidos pelo Poder Público, é certo que o Estado não vem obtendo o esperado e prometido êxito nessa missão, especialmente quando os números revelam milhões de brasileiros vivendo na mais absoluta miséria – um cenário antigo.
A solução para tão graves problemas não é jurídica, pois não envolve a conquista de mais e mais direitos pelo homem. É política. Norberto Bobbio pontifica que o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais de fundamentá-los, mas sim de protegê-los, isso porque “não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”.
Não se afirma a desnecessidade de proclamação de novos direitos do homem, até mesmo porque “os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas etc.” Muitos outros direitos, talvez agora nem mesmo imagináveis, serão conquistados, e isso certamente se dará mesmo antes de termos garantido a concretização de alguns direitos fundamentais básicos dos cidadãos, tais como a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a proteção à infância, meio ambiente ecologicamente equilibrado e outros mais.
II- A ética da responsabilidade social
A Carta Constitucional assinala que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), e que são seus objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I, II, III e IV). Como forma de efetivar esses objetivos fundamentais, declara a Constituição mais de uma centena de direitos e garantias fundamentais, não só em seu Título II, mas igualmente em outros dispositivos constitucionais, a exemplo do direito assegurado no art. 225, além de outros previstos em tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
A reconhecida ineficiência estatal no sentido de garantir efetivamente os direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal e o conhecimento geral dos graves problemas sociais existentes no país, tem levado segmentos da sociedade e empresas a constituírem entes jurídicos voltados para auxiliar ou suprir as lacunas deixadas pelo Estado. Esse esforço coletivo visando auxiliar o poder público a garantir o pleno exercício de direitos assegurados constitucionalmente é fruto do desenvolvimento de uma nova ética: a ética da responsabilidade social. A ética social, como enfatizado por Edson José Rafael, está presente na responsabilidade de todos os indivíduos para com os menos favorecidos, não se admitindo que alguém possa usufruir egoisticamente de sua riqueza sem se importar com o mundo à sua volta.
A solidariedade é o traço característico dessa nova ética social. Quando a Constituição consagra a dignidade da pessoa humana como um princípio, deve não só o Estado mas também toda a coletividade perseguir esse ideal. O contraste hoje existente no Brasil e em tantas outras partes do mundo entre pequenas ilhas de prosperidade e imensos bolsões de miséria atenta contra a dignidade de qualquer ser humano. A desigualdade social, tal como ela hoje se apresenta, é injusta. Só mesmo o esforço comum e solidário da comunidade, em especial constituindo entidades de interesse social e assistencial, sem fins lucrativos, se apresenta como alternativa, pelo menos num curto espaço de tempo, para mitigar os efeitos das desigualdades sociais e de outros fatores que interferem na qualidade de vida do ser humano. O alcance dessa iniciativa pode ser bastante limitado, mas contribui para o desenvolvimento do lento processo de formulação da chamada ética de responsabilidade social.
III- O Terceiro Setor
A proclamação dos direitos fundamentais, e dentre estes os chamados direitos sociais, e o reconhecimento de que esses valores transcendem o interesse privado e o interesse do próprio Estado certamente tem contribuído para a eclosão da chamada ética de responsabilidade social, que se manifesta quando questões de cunho social acabam sendo inseridas na esfera de preocupação moral daqueles que detém poder político e/ou poder econômico, ou simplesmente daquelas pessoas que, despojadas de qualquer um daqueles atributos, se conscientizaram da importância que representa a mobilização coletiva em busca da justiça social.
É justamente nesse segmento de atuação da sociedade, relativos a interesses coletivos e difusos, e que não pode ser caracterizado nem como público nem como privado, posto que há uma supremacia de interesses relativos à coletividade sobre os interesses privados e interesses do Estado, é que se situa o quem vem sendo denominado de Terceiro Setor, ou ainda Setor Independente ou Setor Solidário.
José Eduardo Sabo Paes esclarece que “o Terceiro Setor é aquele que não é público e nem privado, no sentido convencional desses termos; porém, guarda uma relação simbiótica com ambos, na medida em que ele deriva sua própria identidade da conjugação entre a metodologia deste com as finalidades daquele. Ou seja, o Terceiro Setor é composto por organizações de natureza ‘privada’ (sem o objetivo de lucro) dedicadas à consecução de objetivos sociais ou públicos, embora não seja integrante do governo (Administração Estatal)”.
Dessa forma, todos os entes jurídicos não governamentais, que não tenham finalidade de lucro e que tenham como objetivo o bem geral da coletividade, isto é, que se dedicam à concretização de direitos fundamentais, com destaque para os interesses sociais, podem ser havidos como integrantes do Terceiro Setor. Para Edson José Rafael, “o Terceiro Setor é gênero do qual são espécies todas as sociedades civis sem fins lucrativos, inserindo-se aqui a quase totalidade das fundações, em especial as fundações particulares”.
A independência, contudo, não pode ser havida como uma característica imanente das organizações não governamentais, posto que muitas vezes dependem estas de recursos de setores da economia ou até mesmo do próprio poder público.
No âmbito de atuação do Terceiro Setor não estão apenas aqueles direitos havidos como sociais pela Constituição Federal, em seu art. 6º., mas, num contexto mais amplo, os direitos fundamentais, gênero do qual aquele é espécie.
O Prof. Paulo Bonavides, discorrendo sobre a teoria dos direitos fundamentais, enfatiza que “o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês, exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a seqüência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade”. Explica o festejado autor que os direitos fundamentais manifestaram-se na ordem institucional em três gerações sucessivas: direitos da primeira, da segunda e da terceira geração, a saber, direitos da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Os direitos da primeira geração – ou da liberdade – são os direitos civis e políticos, e têm por titulares os indivíduos, traduzindo-se como faculdades ou atributos da pessoa, caracterizando-se como direitos de resistência ou de oposição perante o Estado; os direitos da segunda geração – ou da igualdade – são os direitos sociais, culturais e econômicos, bem assim os direitos coletivos ou de coletividades. Quanto a estes direitos, porque não concretizados através de instrumentos processuais como ocorre com os direitos da liberdade, acabaram sendo inicialmente remetidos à esfera programática, comprometendo sua observância e execução. Esse panorama vem sendo modificado nas mais recentes Constituições, aí se incluindo a brasileira (CF, art. 5º, § 1º), porque nelas foi inserido comando de que as normas definidoras dos direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata; por fim, os direitos da terceira geração – ou da fraternidade – são “dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade”, e “tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinação o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”. Paulo Bonavides assinala que cinco direitos da terceira geração já estão bem delineados contemporaneamente, sendo bem possível que outros estejam em fase de gestação: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação.
Portanto, podem ser havidas como do Terceiro Setor não somente aquelas organizações não-governamentais (ONG’s) que tenham por objetivo a concretização de direitos sociais, mas também a concretização de direitos difusos, também chamados metaindividuais ou supraindividuais. Tais entidades – as associações civis, as sociedades civis e as fundações de direito privado – “cobrem um amplo espectro de atividades, campos de trabalho ou atuação, seja na defesa dos direitos humanos, na proteção do meio ambiente, assistência à saúde, apoio a populações carentes, educação, cidadania, direitos da mulher, direitos indígenas, direitos do consumidor, direitos das crianças etc.”
Assinala-se mais uma vez, por oportuno, que o Terceiro Setor é composto de entes coletivos – pessoas jurídicas de direito privado – sem fins lucrativos. São entidades de interesse social, caracterizadas sempre pela renúncia ao lucro e voltadas para a consecução do bem geral da coletividade.
IV- Considerações finais
Porque as pessoas jurídicas que integram o Terceiro Setor têm objetivos da mais alta relevância para a realização do bem comum, seja através de uma associação ou sociedade civil em que diversas pessoas se reúnem em torno de um objetivo comum, seja através de uma fundação, idealizada pela resolução de um só indivíduo ou de um ente coletivo que destina patrimônio para se constituir e manter a instituição concebida para determinado fim, certamente deveriam estar sujeitas a um controle mais eficaz do Estado, algo que acontece tão-somente com as fundações, em especial as de direito privado, cujo velamento compete ao Ministério Público (Código Civil, art. 26, e Código de Processo Civil, art. 1199 e seguintes).
Aliás, essa atribuição conferida ao Ministério Público decorre até mesmo do perfil que esta instituição ganhou na Carta Constitucional de 1988, “incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput). A Constituição Federal ainda alinhavou como uma das funções institucionais do Parquet a promoção do inquérito civil e da ação civil pública “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, III).
Tais funções, além de outras também assinaladas no texto constitucional, vêm sendo desenvolvidas de forma exemplar pelo Ministério Público, não descurando a instituição da missão que lhe foi confiada pelo legislador constituinte: o de guardião dos interesses indisponíveis da sociedade.
Especialmente num país carente de uma presença mais eficiente do Estado em diversos setores relacionados com o bem-estar da população, se avulta cada vez mais a importância das organizações sociais integrantes do Terceiro Setor e do Ministério Público, uma instituição fortalecida e ciente da missão que tem de realizar no meio social.
Porque essa responsabilidade social que vem sendo assumida pelo Terceiro Setor tem revelado resultados surpreendentes, dos quais a sociedade não pode prescindir, devendo na verdade ser incentivado o seu incremento, e porque não existe no Brasil uma legislação específica sobre a matéria, salvo os dispositivos já mencionados que dizem respeito às fundações e a Lei n. 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social), deve o legislador editar um diploma específico e sistematizado no sentido de melhor ordenar a criação, existência, fiscalização e extinção das entidades sem fins lucrativos voltadas para a consecução do bem geral da coletividade, mas sempre com vistas a possibilitar o desenvolvimento do setor, e jamais criando dificuldades ou óbices que inviabilizem a sua expansão. Com isso, e conferindo também a um órgão público o poder-dever de fiscalização, que poderia ser atribuído também ao Ministério Público, estar-se-ia consolidando de vez o Terceiro Setor.
Enfim, a busca incessante da justiça social a fim de assegurar a todos existência digna depende do esforço não só do Estado, mas também da coletividade e do Terceiro Setor, e isso se dará através da efetiva concreção dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Constitucional, que não podem continuar sendo uma proclamação solene de direitos não realizados.
- PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4 ed. So Paulo: Max Limonad, 2000, p. 142.
- Idem, p. 143.
- A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25.
- BOBBIO, Norberto. Ob. cit., p. 18.
- Fundações e direito. So Paulo: Companhia Melhoramentos, 1997, p. 3-4.
- Fundações e Entidades de Interesse Social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis e tributários. 2 ed. Braslia: Braslia Jurdica, 2000, p. 56.
- Ob. cit., p. 6.
- Curso de direito constitucional. 10 ed. So Paulo: Malheiros, 2000, p. 516.
- Ob. cit., p. 514-522.
- BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 523.
- Ob. cit., p. 523.
- SABO PAES, Jos Eduardo. Ob. cit., p. 57.